Sexta-feira, 13 de dezembro de 2024 - Por Rafael Brandão
"Precisamos reconectar o ser humano à natureza", diz Cristiana Seixas, vencedora do Prêmio Pq 2024
Em entrevista, pesquisadora compartilha os marcos de sua carreira e reflete sobre os desafios da diplomacia científica
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A relação entre a conservação ambiental e o desenvolvimento local é tema de crescente relevância em tempos de mudanças climáticas e perda acelerada da biodiversidade. É nesse campo que atua Cristiana Seixas, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) da Unicamp e referência na interface entre ciência, comunidades locais e políticas públicas. Com uma trajetória marcada pela interdisciplinaridade, Cristiana une a biologia, a ecologia humana e a governança ambiental para lidar com sistemas socioecológicos complexos. Nesta sexta-feira (13), em cerimônia que lotou o Centro de Convenções da Unicamp, ela recebeu o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico para Pesquisadores da Carreira Pq da universidade, destacando-se pela abrangência e impacto de sua atuação. Além de sua produção acadêmica - que inclui dezenas de artigos, livros e capítulos -, Cristiana também se dedica à defesa da importância da divulgação científica e busca formas cada vez mais eficazes de se comunicar com públicos diversos, desde gestores ambientais até comunidades locais, promovendo o diálogo e a sensibilização sobre a importância da biodiversidade e das práticas sustentáveis. Em entrevista, Cristiana compartilha os marcos de sua carreira, desde o início como estudante no Colégio Técnico de Campinas (Cotuca), passando pela experiência internacional no Canadá, até sua liderança em projetos de grande impacto, como o diagnóstico sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos nas Américas. Ao longo da conversa, ela reflete sobre os desafios da diplomacia científica, a importância de construir pontes entre diferentes saberes e a necessidade urgente de reconectar o ser humano à natureza. Como se iniciou seu interesse pela carreira de pesquisadora? Eu sonhava em ser cientista desde os 12 anos de idade, na sexta série, quando começamos a estudar genética, leis de Mendel… Lembro bem que pensei: "um dia, quero ser uma cientista como esses caras foram". Hoje eu brinco que consegui me tornar uma pesquisadora, mas ainda falta muito para ser a cientista que eu sonhava [risos]. Quando foi seu primeiro contato com a Unicamp e como foi o início da sua trajetória acadêmica? Eu brinco que sou cria da Unicamp desde o colegial, porque estudei no Colégio Técnico de Campinas (COTUCA). Me mudei para Campinas aos 15 anos por isso. Depois, fiz biologia na Unicamp. Foi o único vestibular que prestei, porque era realmente o que eu queria. No curso, havia a área molecular, ambiental e biomédica. Comecei na área molecular, mas no terceiro ano da graduação senti que não daria conta de passar o resto da vida em laboratório. Eu gostava, mas não tanto assim. Cresci na roça e preciso de espaço livre, contato com a natureza. Então, comecei um estágio na área ambiental. No último mês da graduação, eu assisti uma palestra sobre ecologia de pescadores da Amazônia. Foi aí que eu resolvi que queria trabalhar nessa área. Logo depois de me formar, fui para a Amazônia e trabalhei como bióloga durante um ano, em Santarém. Depois voltei à Unicamp para o mestrado em ecologia humana, orientada pela Alpina Begossi, que na época era do NEPAM e vinculada ao programa de ecologia do Instituto de Biologia. Desde então, são quase 30 anos de NEPAM. Terminei o mestrado em 1997 e fui para o Canadá fazer doutorado em gestão ambiental e de recursos naturais. Comecei a trabalhar com a dimensão mais social e econômica da relação ser humano/natureza. No mestrado, eu tinha um olhar muito alicerçado nas abordagens da ecologia evolutiva, que era o forte da Unicamp na época, compreendendo ser humano e natureza por uma perspectiva das teorias da ecologia clássica. Já no doutorado, me debrucei mais sobre a dimensão social e econômica da gestão da relação ser humano e natureza, do uso e manejo dos recursos naturais. Podemos entender que essa trajetória indica um aprofundamento crescente na interdisciplinaridade? Sim, totalmente. Durante meu doutorado, fiz disciplinas de sociologia e economia, entre outras. E já nessa época meu projeto foi inserido numa rede internacional de pesquisa que incluía, por exemplo, a Elinor Ostrom, que veio a ganhar o prêmio nobel de economia em 2009. Tive a oportunidade de interagir com pesquisadores de prestígio, que traziam abordagens inovadoras e pensavam sistemas socioecológicos -, que hoje são a base dos meus projetos. Isso me abriu muitas portas de colaboração quando eu voltei para o Brasil, com uma bolsa de pós-doutorado, para trabalhar novamente com a Alpina, que ainda estava no NEPAM na ocasião. Como foi o ingresso na Unicamp como pesquisadora? Eu praticamente emendei o pós-doutorado com o ingresso na universidade como pesquisadora no NEPAM, em 2008. Nessa época, a Alpina já não estava mais lá. Logo em seguida eu consegui emplacar um projeto de grande porte, em parceria com a UFSC, UFRG, e UFPR, de formação de pesquisadores e gestores em transdisciplinaridade para gestão e governança de áreas marinhas costeiras. Esse projeto foi desenvolvido entre 2010 e 2015. Já entre 2012 e 2019, coordenei um projeto chamado Rede de Pesquisa e Conservação por Comunidades, que também tinha alcance internacional. Depois, por sugestão do professor Carlos Joly, que é um grande incentivador do meu trabalho, participei da reunião de delineamento dos diagnósticos regionais da Plataforma Intergovernamental Sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Um ano depois, abriram uma chamada para um diagnóstico sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos nas Américas, da Patagônia ao Alasca. Me inscrevi como autora, mas me chamaram para ser uma das coordenadoras. Deu um frio na barriga: será que daria conta? Mas depois de refletir bastante, resolvi aceitar. Então, de 2015 a 2018, eu me dediquei muito a fazer esse trabalho. Coordenei mais de 100 cientistas de vários países para fazer essa síntese do conhecimento sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos. De que forma essa experiência de coordenar um projeto tão abrangente impactou sua trajetória? Minha área de pesquisa sempre esteve focada em comunidades, e este convite chegou em um momento em que eu estava um pouco frustrada. Estávamos trabalhando para embasar cientificamente um acordo entre uma comunidade e uma unidade de conservação. Tivemos todo um delineamento e monitoramento da pesca participativa — ou melhor, facilitamos a construção desse processo dentro da comunidade -, mas.a situação estava um pouco travada, pois a mudança de governo afetava o andamento, mostrando como a parte institucional e política frequentemente retém questões construídas coletivamente e participativamente. Então, quando surgiu essa oportunidade de trabalhar em uma organização intergovernamental, com mais de 120 países envolvidos, pensei: quem sabe trabalhamos de baixo para cima, fortalecendo articulações, mas também de cima para baixo, criando atenção e novas discussões para transformar a realidade que enfrentamos — uma contínua degradação da biodiversidade e dos modos de vida das populações tradicionais com as quais eu trabalho. Foi um desafio significativo e tenso em alguns momentos, porque se trata de diplomacia científica no mais alto nível. Pode falar um pouco mais sobre esse aspecto da diplomacia científica, sobretudo nessa área tão sensível, que mobiliza muitos interesses? Muitos interesses, exatamente. Acredito que, talvez, uma qualidade que eu nem sabia que possuía, mas que ao longo desse processo ficou mais clara para mim, tem a ver com a minha trajetória de vida. Sou filha de produtor rural. E hoje trabalho com conservação da biodiversidade. Parecem áreas totalmente antagônicas, mas não são. Não existe agro sem biodiversidade, e não existimos sem ter o que comer. Essa experiência, com um pé na vida de quem luta para sobreviver da terra e outro na de quem luta para conservar o ambiente, me ajudou a não ser extremista para nenhum lado e buscar a interface entre conservação e desenvolvimento — que é uma das minhas linhas de pesquisa. Diplomacia científica, então, é fazer política baseada em conhecimento, mas sabemos que o conhecimento científico também apresenta seus vieses de valores. Para cada afirmação, precisávamos indicar o nível de consenso. Aprendemos a lidar com aspectos sensíveis, pois em certos casos há boa ciência que apresenta um lado e boa ciência que parece mostrar o oposto. Por exemplo, organismos geneticamente modificados. É difícil chegar a um consenso. Por isso, é fundamental não sermos extremistas. A diplomacia científica exige uma abordagem na síntese de conhecimento científico, sem tomar partido — e essa habilidade precisa ser desenvolvida. Nós, cientistas, não somos treinados para isso, muito pelo contrário. Foi, portanto, um aprendizado contínuo.
Imagem: Cristiana Seixas, Antônio Meirelles (reitor da Unicamp) e Marta Teixeira Durte (coordenadora associada da COCEN) na cerimônia de entrega dos prêmios institucionais 2024 Cristiana Seixas, Antônio Meirelles (reitor da Unicamp) e Marta Teixeira Durte (coordenadora associada da COCEN) na cerimônia de entrega dos prêmios institucionais 2024
Quais foram os projetos mais recentes que você coordenou? De 2017 até recentemente, eu participei da Coordenação Executiva da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES). Ali coordenei com dois colegas o primeiro diagnóstico marinho costeiro brasileiro, envolvendo 67 pesquisadores de todas as regiões do Brasil. Trouxemos inovação ao envolver povos indígenas e populações tradicionais na documentação de seus conhecimentos. Também coordenei uma mini-síntese regional na APA (Área de Proteção Ambiental) de Campinas e organizei uma Escola São Paulo de Ciência Avançada em Transdisciplinaridade para mudanças transformadoras apoiada pela FAPESP e com participantes de 30 países. Quais os principais desafios da transdisciplinaridade? Fazer transdisciplinaridade envolve muito tempo. Nós não chegamos numa comunidade, fazemos uma pesquisa e vamos embora. Criamos laços de confiança. Em nossos projetos, sempre cultivamos vínculos de longo prazo com as comunidades. Na relação com gestores públicos, é similar. Portanto, é importantíssimo compreendermos que a pesquisa transdisciplinar não tem a mesma rapidez que outras abordagens. Não conseguimos publicar uma série de papers em um curto espaço de tempo - mas construímos outros produtos bastante relevantes e importantes para a promoção das mudanças que desejamos na sociedade. Isso não era tão valorizado no passado recente. A ênfase no aspecto quantitativo tem perdido espaço? Sim, menos ênfase na quantidade e mais na qualidade, menos ênfase na especialidade… Trabalhando com gestão e governança, as pessoas perguntam: você é especialista em quê? Eu respondo que sou especialista em generalidades. Minha formação como um todo me permite essa abertura de dialogar com economistas, sociólogos, ecólogos, geógrafos… Acredito que essa capacidade de criar diálogos e navegar pela transdisciplinaridade entre natureza e sociedade foram aspectos valorizados nesta premiação, porque o parecer menciona a abrangência e amplitude das minhas atividades. Qual a importância da formação de pessoas na pesquisa? Em geral, não oriento muitas pessoas, mas me dedico muito às poucas que oriento. Foco em qualificar o pesquisador para desenvolver pesquisas inter e transdisciplinares em diálogo com a sociedade. Isso envolve habilidades de escuta e a capacidade de dialogar com atores externos à universidade - questões que parecem simples, mas não são. Ter pessoas formadas para criar esse diálogo é importantíssimo. Saber se comunicar com as pessoas fora da academia. Ter humildade para entender que outras formas de conhecimento também são válidas. O mesmo acontece nas publicações. Em comparação com alguns colegas, principalmente ecólogos, eu publico menos em revistas internacionais de alto impacto, por exemplo. É claro que, se estou produzindo ciência, quero que o público internacional compreenda o que estou fazendo e os avanços que trago para o conhecimento, mas sobretudo busco dialogar com o público brasileiro, especialmente gestores ambientais. Como fazer com que os diferentes públicos sejam impactados? As sínteses de conhecimento de que eu participo têm como público alvo os tomadores de decisão. Quando falamos em tomadores de decisão, estamos falando não apenas dos legisladores estaduais e nacionais, representantes de ministérios e secretarias, do terceiro setor ou da iniciativa privada, mas também do cidadão comum. Todos nós somos tomadores de decisões que influenciam e reverberam nas questões de conservação ambiental. Então, essas sínteses de conhecimento precisam ser feitas numa linguagem adequada aos públicos que pretendemos atingir. Por exemplo, eu ajudei a orientar o trabalho do diagnóstico sobre agricultura, biodiversidade e serviços ecossistêmicos da Plataforma Brasileira. O primeiro documento que recebi dos colegas começava afirmando que a agricultura tem destruído a biodiversidade, que a expansão agrícola é um problema para a biodiversidade... Não podemos esperar que pessoas do agro leiam o trabalho, se já começa com isso. Primeiramente é preciso mostrar para as pessoas do agro, por exemplo, que a polinização é fundamental para a produção agrícola, e que sem o polinizador eles terão perda na safra. Precisamos mudar esse discurso de que o agro é o grande problema… Eu não discordo de que ele seja um grande problema para a biodiversidade, mas também pode ser a grande solução. Se não trouxermos o agro para a conversa, nunca vamos conseguir resolver a questão da destruição ambiental. Pregar para convertido é fácil. Falar somente para biólogos, ecólogos, pessoal da geografia e sociologia… O desafio é falar com os de fora, com quem trabalha na mineração, na agricultura. Precisamos criar oportunidades de diálogo mostrando os benefícios da biodiversidade para as atividade deles. É uma lógica totalmente diferente de contar a história. O que pode antecipar sobre seus próximos projetos? Durante a pandemia, desenvolvemos em nosso grupo de pesquisa a proposta de um laboratório de vivências, de reconexão do ser humano com a natureza. Cada vez mais eu tenho compreendido que uma das questões estruturais capazes de levar a uma transformação nessa trajetória de degradação ambiental diz respeito às mudanças internas do ser humano em sua relação com a natureza. Já está provado que as tomadas de decisão se dão também pelo aspecto emocional, não apenas racional. Então precisamos reconectar o ser humano à natureza não apenas pela informação, pelo cognitivo, pelo pensar, mas também pelas emoções. Além de informar as pessoas, precisamos sensibilizá-las. Minha intenção é, aos poucos, começarmos a implementar esse laboratório. Não é algo simples, mas já estou iniciando essa abordagem em algumas disciplinas e observei efeitos muito importantes.

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